quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Edição nº46



Crónica

Hortelã, Alecrim

No meu primeiro ano de curso, na cadeira de Antropologia, após a definição das bases de trabalho para um trimestre, foram formados grupos de alunos de acordo com as temáticas propostas. Nessa divisão coube-me em sorte, a mim e a mais duas colegas, um “ estágio” num mercado do Porto, o Mercado do Bom Sucesso; mercado dos anos 50, de arquitectura modernista (inovadora estrutura de abóbada de betão vidrada), situado na zona da Boavista, sendo a sua implantação neste local decorrente do processo de policentralidade que a cidade conheceu por essa altura.

O trabalho consistia na observação diária, em horário matinal, com duração de três meses, e respectivo relatório circunstanciado, lá para o final. Nós, as três alunas, ficámos perplexas quanto ao trabalho que teríamos de apresentar e questionámos a professora:

“Então e só observar assim, a seco? Nem umas entrevistazinhas aos vendedores?”

“Não, nada de entrevistas. Vocês ainda estão muito verdes.”

E estávamos. Tão verdes que nas nossas ocas cabeças não havia vislumbre de nada a realçar. Debruçadas num varandim do mercado, dias a fio, vendo o fluir daquela vida por dentro, olhando para tudo o que se passava mas sentindo-nos na mais completa orfandade, descrentes e incapazes de levar a bom termo tal trabalho. E aos poucos, fomos perscrutando, questionando, analisando, problematizando e, de gerúndio em gerúndio lá fizemos o trabalho escolar mas, mais do que isso, aprendemos que tudo contém em si o que valha a pena ser visto.

Muitos anos e muitas voltas depois, encontro--me, vai para um ano, no mercado da Horta. E por cima de latitudes, mares, tempos e espaços, e num registo diferente daquele que outrora o rigor do trabalho académico me obrigava mas, contudo, com o lastro que a academia me foi inculcando, aqui me venho encontrar, num arremedo de “observação participante”.
Entremos neste mercado com a data de 1933 afixada. Deixemos a data e o contexto. O “mercado” é intemporal. Não pretendendo escalpelizar as dimensões de análise, vamos situar o “mercado” na sua componente principal, que atravessa os tempos e se mantém inalterável - o seu significado espacial e sócio-cultural. Na sua génese, este é (às vezes a par com outras instituições) o epicentro de qualquer agregado populacional que, pela sua dimensão, seja entronizada a burgo ou a cidade, tanto faz. É através da troca de bens e serviços e do local onde esta acontece que a cidade gravita. O “mercado” ocupando um espaço de centralidade funciona como local de troca de mercadorias e local de confluências. Espaço transversal em termos de estratificação social, possibilita nas dinâmicas interpessoais que o conceito de “troca” tenha aí toda a sua abrangência,

Troca de bens, de palavras, de ideias. No lugar mais chão da existência, onde coabitam o ócio e o negócio, o “mercado” é por excelência o local onde se representa a “vida” porque é sobre o signo do quotidiano que ela melhor se revela. Ao longo do tempo o “mercado” vai perdendo o seu carácter de unicidade no confronto com novos locais de comércio bem como o seu pendor de espaço aglutinador da comunidade.

E com um salto no tempo (nunca e assim tão grande quando a recordação está viva) o Mercado da Horta também, como os demais, enfermou da realidade avassaladora do “progresso” e encontra-se em processo de definhamento ao qual não é alheio o concomitante desinvestimento na agricultura local.

Mas, apesar de tudo, o mercado permanece fisicamente no seu posto. Ainda lá moram os vendedores do Pico que o presenteiam com legumes e pitoresco. Ainda tem plátanos frondosos e portões abertos às gentes da terra. Embora tendo perdido relevância social e comercial em prol das novas catedrais de consumo (com as quais não pode almejar ser concorrencial), perdura, contudo, no nosso imaginário colectivo talvez com o cunho romântico da feira medieval feita ao ar livre, numa representação saudosa de uma vida chã.

Todos ouvimos dizer a quem ruma a outras paragens que, quando chega a uma cidade, vai visitar o mercado local. Toda a gente tem na ideia que aí vai, por certo, sentir o pulsar da terra, sentir como se vive o dia-a-dia ou seja, a vida comezinha de todos os “outros” que somos nós. O “outro”, na sua vida sem arrebiques, que vende, que compra, que procura o que diariamente consome, as conversas personalizadas com o comerciante que conhece e o conhece, em suma, o que se chama o pequeno comércio ou o comércio tradicional, o qual, muito embora, tão enfatizado no “politicamente correcto”, vai sofrendo progressivas machadadas numa época em que se prefigura a insensata abertura das grandes superfícies aos domingos e feriados (onde já nem a igreja nos salva nos dias “santos de guarda“ que fará a temporal “semana à inglesa”?).

Assim, o “mercado” não tendo o fulgor de outras épocas, deveria conservar a pujança da sua dimensão identitária. O aconchego de sermos “nós”, o sabor das nossas entranhas, uma amostra da nossa terra-Topos e das colheitas da nossa terra-Húmus. Não é só mais um local da cidade. É um local onde a vida comum se cumpre. Arranja-se por aí coisa mais pós-moderna?

Então porque deixamos estiolar o mercado? Porque não o recriamos, o reconceptualizamos em vez de deixar morrer o que sabemos, oh bem sabemos que nos deixara saudades.

E muito a propósito a questão prosaica mas indispensável do estacionamento. Todos sabemos que este é um importante contributo para o incremento destas estruturas “comerciais” porquanto as questões das acessibilidades são fundamentais. Não poderá a Câmara comprar terreno contíguo ao actual estacionamento ou, vá lá, o mesmo ser oferecido à cidade por alma filantrópica? Nós passamos e os sítios perduram. Vender, dar, trocar, comprar é tudo igual, só difere a unidade monetária (sendo o afecto um valor não despiciendo). Ideias, pois, precisam-se que o Faial agradece.

Paula Bacelar

Colaboradores:

Capa: Patchwork de Patrícia Smith
Artes Plásticas: Ana Correia, Fernando Nunes
Literatura: Fernando Nunes
Ciência e Ambiente: Mário Rui Pinho
Gatafunhos: Tomás Silva

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