sexta-feira, 4 de junho de 2010

Edição nº 40



Crónica

Ao abrir Baleia! Os baleeiros dos Açores, dei-me conta que, tal como para José Henrique Azevedo, a minha relação com este livro é uma história de família, pois que as histórias de baleação, o primeiro contacto com livros como os de Robert Clarke e até o conhecer do nome de Bernard Venables se fizeram pela mão do meu avô paterno.
À adolescência alimentada pelos sonhos do mundo marinho do capitão Nemo, de Júlio Verne (povoado de imensos monstros entrevistos pelas vigias do Nautilus que se descobriam depois simples seres dos mares), pela admiração da coragem, eivada de loucura, do capitão Achab de Melville ou pelos baleeiros de Vitorino Nemésio e Dias de Melo, juntavam-se um sem número de histórias que o meu avô evocava, fotografias desbotadas e livros que me adivinhavam uma vocação não realizada.

Paralelamente, na altura, a militância pelos direitos dos animais parecia-me respeitada pela desigualdade evidente da luta entre o homem, na sua pequenez absoluta, e o esplêndido animal, imenso de força e astúcia. Não que essa desigualdade redimisse a violência mas, quando comparada com a baleação industrial, parecia que aqui se deixava sempre uma hipótese ao animal, que não poucas vezes a aproveitava, semeando medo e morte, construindo uma epopeia em cada uma dessas saídas para o mar.

Nascida numa altura em que chegar ao Faial não passava por mais dificuldades do que embarcar num avião, pelas palavras de Venables dei comigo a deliciar-me com a ideia de que antes essa viagem tinha uma série de escolhos que permitia aos viajantes darem-se verdadeiramente conta das distâncias e das diferenças entre o sítio de onde saíam e o sítio onde chegavam, como se tal como ele viesse por mar, a bordo do Espírito Santo.

A memória é sempre um caleidoscópio construído, onde misturamos as nossas próprias vivências e o que nos foi contado mas, para quase todos os que aqui vivem, não será difícil identificar imediatamente os lugares e as personagens que Venables evoca, o João do Talho (uma viela estreita que dava lugar ao rescender dos cozinhados e o feitio severo que decidia por cada cliente, como se não fosse um restaurante mas antes alguém que abria a porta da sua casa), o café Sport (não a versão actual mas o pequeno reduto em que se vendia tudo e mais alguma coisa, embora já estivesse numa posição privilegiada, de frente para o porto, uma vigia do pulsar da própria ilha, das idas e vindas, mais do que um café, um fornecedor, aquele que satisfazia todas as necessidades dos que chegavam, lugar de partilha de histórias contadas um sem número de vezes, como se o tempo ali ficasse suspenso), o porto e as suas inúmeras embarcações.
O que talvez, pelo menos para os mais novos, será menos óbvio recordar são todas as descrições que se referem efectivamente à baleação.

Os baleeiros que Venables encontrou já não eram os que tinham conhecido os navios de New Bedford e de Nantucket (cujas descrições o levaram a interessar-se pelos Açores) mas continuavam a usar os mesmos termos técnicos que tiveram a sua origem na corrupção fonética dos termos ingleses (como o célebre blós), embora tivessem uma motivação bem diferente destes.

Nos Açores, independentemente da rivalidade entre as companhias e apesar do valor económico que a baleação tinha, o essencial estava na luta com o gigante, no desafiar o mar e o vento (na infância, a reprodução minuciosa de um bote baleeiro sempre me tinha fascinado, parecia tudo tão frágil e quando a embarcação se tornava verdadeira no cais, mais frágil ainda, como se podia crer que ali iam sete homens, mar afora, sem uma protecção digna desse nome?).

Nas palavras de Venables reencontro inevitavelmente as palavras do meu avô, a descrição do homem solitário que na vigia perscruta o horizonte em busca de um sopro, o grito “Baleia!” e a Walkiria que atravessa a doca, entra no canal rumo ao mar aberto, arrastando os homens para o perigo de morte (Venables teve aliás de assinar uma “Certidão de óbito” – um documento em que assumia que partia por sua conta e risco – para poder acompanhar os baleeiros). Mas, para aqueles que nada de pessoal liga a esta época, o interesse não se perde pois Venables descreve minuciosamente os instrumentos e os gestos dos homens, de tal modo que parece que o leitor, também ele, está no bote, segue os gestos do trancador, sofre em cada remo que desce e corta a onda, os músculos retesados num mesmo ritmo, anseia por uma morte que parece não vir.

Sem contemplações, com uma frieza descritiva, o relato que faz da caçada não lhe retira a violência nem esquece o sofrimento do animal, mas debruça-se inequivocamente sobre os gestos de cada homem, sobre as histórias contadas de acidentes e horríveis naufrágios, uma baleia que não se tranca ou que se perde no rebocar, esforço vão, relembra a “arena de sangue” em que o cachalote agoniza, o ciclo sem piedade de uma Natureza que molda o próprio homem.

Além disso, Venables debruça-se também sobre o que se segue à caçada, o reboque para a fábrica (e em Porto Pim esta ainda é um marco do passado, renovado agora numa nova vida, como se repetíssemos na pedra o eterno ciclo da vida), o “desmanchar” da baleia, o “scrimshaw” e as festas à senhora da Guia, os baleeiros que abandonavam as idas ao mar mas a quem o ribombar do “bombão” ou o grito de “Baleia!” atordoavam os sentidos, desenhando uma comunidade onde a baleação teve uma influência durável.

Graças a Venables, a memória é um livro reaberto, é novamente uma mão estendida mostrando a imensidão de areia dos Capelinhos, desenhando um rastro de espuma no mar, a voz do avô contando casos que tinham acontecido nos dezoito anos em que também ele vivia ao ritmo ditado pelos homens das vigias, as rivalidades com os homens do Pico, são os objectos que emergiam de uma loja atulhada, coisas herdadas de um tempo já esquecido.

Catarina Azevedo



Colaboradores:


Capa: Pedro Monteiro
Música: Zeca Medeiros
Cinema e Teatro:
Aurora Ribeiro, Fernando Nunes
Arquitectura e Artes Plásticas: Ana Correia, CMH
Ciência e Ambiente: Lia Goulart

Gatafunhos: Tomás Silva

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